ヨーロッパへの窓

★★★★★★

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目覚め

Acordar de estar acordada

アナ・マルガリーダ・デ・カルヴァーリョ

Ana Margarida de Carvalho

Ana Margarida de Carvalho was born in Lisbon in 1969, and worked as a journalist for 25 years. Her first novel Que Importa a Fúria do Mar (Teorema) was awarded the Grande Prémio de Romance e Novela APE/DGLAB in 2013. Her second novel, Não Se Pode Morar nos Olhos de um Gato (Teorema) was selected as book of the year by the SPA (Portuguese Society of Authors), shortlisted for the Prémio Oceanos, awarded the Prémio Literário Manuel de Boaventura and, again, the Grande Prémio de Romance e Novela APE/DGLAB in 2016. Pequenos Delírios Domésticos (short stories, Relógio d’Água, 2017) received the Prémio de Conto Camilo Castelo Branco / APE.
During the lockdown caused by COVID-19, Ana Margarida challenged more than 40 writers to join her in the cultural resistance project “Escape Goat”, by writing a collective, serial novel, with each writer given 24hours to respond to the previous chapter. 46 writers, 46 visual artists and 50 translators were united in this collective document, translated into 5 languages, of these times affected by social isolation. (https://escapegoat.world/)

アナ・マルガリーダ・デ・カルヴァーリョは1969年にリスボンに生まれる。ジャーナリストとして25年間活動した後作家活動を開始。第1作『海が怒ったとて(未訳)』、第2作『猫の目に住むことはできない(未訳)』が共に2013年と2016年にポルトガル作家協会長編小説賞を受賞したことで注目を浴びる。その後に出版した短篇集『家庭内の小さな錯乱(未訳)』は重要な短篇文学賞を受賞して、ポルトガル文学界での地位を確立した。
コロナ禍によるロックダウン中に「今こそ作家として連帯してできることを」と、毎日1人1章をリレー形式で受け持って1作の小説『エスケープ・ゴート(未訳)』を書き上げるというプロジェクトを立ち上げた。46人のポルトガル語の作家、46人のアーティストと50人の翻訳者が賛同し、英、西、仏、伊、蘭と5カ国語にも随時翻訳された。(https://escapegoat.world/)

Ana Margarida de Carvalho

Acordar de estar acordada
Fazia dias que despertava de véspera. Não me peçam explicações. Ao longo dos seus 38 anos de vida acontecia-lhe acordar no presente, no novo dia que então começava. Estranha sensação, não totalmente desagradável, acordar ontem ou anteontem. Curioso, retrocedia sempre. Incessantemente para trás, nunca para diante. Mas a julgar pela quantidade de coisas estranhas que lhe tomaram de assalto o quotidiano, era só questão de readaptar a expressão verbal, eu hoje acordei ontem, nada de mais, quantas vezes não terá sucedido nestes dédalos da linguagem e dos tempos verbais, ninguém me peça definições, os filólogos lá saberiam. Ela, apenas uma jurista de Direito Fiscal, em licença de maternidade prolongada, mãe solteira de três meninos gémeos. Estava por tudo, só uma coisa dava por garantida, ela e os seus pequenos gémeos estavam a salvo do cerco. Nem que tivesse de lançar azeite a ferver pelas ameias, soprar fogo grego, atirar limalhas de vidro através das seteiras. Ou tudo isto junto. Sempre ouviu dizer que os sitiados, dentro da fortaleza, se refugiavam concentrando-se numa cidadela com armas e mantimentos. Para ela e os filhos que começavam a dar os primeiros passos, Verónica reservou o velho guarda-fatos, de uma tia remota, madeira maciça, desproporcionado para um apartamento com duas divisões. A única prova de existência da sua família desagregada. Muito irónico, pensava Verónica, aquele móvel agora como um útero, que a acolhia a ela e aos filhos, herança de uns parentes que mal conheceu, vagas visitas a centros de desintoxicação, olhos sanguinolentos de peixe a asfixiar na bancada, pais de acolhimento e irmãos muito mais velhos com bocas de zarabatana a cuspir dardos de veneno. Só susto e desconcerto, ela sempre atrás das pernas de adultos que lhe pareciam menos beligerantes. A vida dá muitas voltas, costumava dizer a porteira que lhe amparava a porta do elevador para fazer entrar o triplo carrinho dos bebés. Pois dá, a quem o diz. Há quanto tempo não se viam, a porteira sempre solícita, com um pé na porta e olhos entradiços pelo corredor afora. Muito amável a senhora, ainda estaria viva? Quantas sinuosidades deve ter levado aquela existência. Nunca lhe dera para perguntar porque se escondia uma engenheira atrás de uma esfregona num condomínio. Fora ela quem inventara a geringonça de roldanas que içara o móvel familiar depositado no passeio. Os homens das mudanças, ah, isso agora, só desmontando tudo, minha senhora, e a gente com móveis antigos não se responsabiliza. E a porteira, está bem, está, espera aí que já vos digo. Rabiscou uns riscos no papel, fez umas contas de cabeça, e Verónica ouviu-a martelar, enquanto ela mãe rotativa, quase sem sair da poltrona, porque quando acabava de dar de mamar a um bebé, começava a mudar a fralda a outro e depois era hora dos banho também em regime de linha de montagem. Ao fim de dois dias, atravancando a sua varanda, um trapézio de madeira com um sistema de roldanas para içar o descomunal armário. Parecia-lhe um extravagante engenho de guerra medieval, uma catapulta, talvez. Bem jeito lhe fez na altura com o tal guarda-fatos, e agora para alçar mantimentos, sem pôr um pé na rua. Tão prestável a porteira, temos de ser uns para os outros, tão dotada, era sempre ela quem reparava os elevadores do prédio, desentupia canalizações dos condóminos, introduzia-se nas condutas de ar-condicionado, detectava as fugas de gás, punha a funcionar electrodomésticos renitentes. Verónica não era perguntadeira, não fazia o seu género, nem na noite em que a viu ser empurrada para o banco traseiro um carro negro, que se chama viatura, amparada a sua cabeça pelo gesto de a proteger que sempre fazem estes homens, que se chamam agentes. Verónica não lhe perguntou nada na manhã seguinte, já ela no patamar de entrada a segurar a porta ao carrinho dos bebés, esfregona na mão, e cinto de ferramentas à cintura. Nem Verónica lhe investigava as suas nocturnas ilicitudes nem a porteira porfiava a tripla fertilidade autónoma daquela condómina. Apesar dos seus olhos inquisitivos, já a entrar pelo corredor adentro, a sondar primeiros dentinhos, qual dos três começava a andar, se ainda davam más noites, Verónica envolvia os assuntos domésticos numa discrição velada, como a outra do sudário, deixava ficar apenas uma impressão vaga e desfocada. A porteira não lhes distinguia os rostos, mal identificava qual a menina entre os dois rapazinhos, e a sua curiosidade jamais passou da ombreira, dois toques rápidos com o nó dos dedos na porta e logo Verónica lhe entregava a velha cadela ao passeio solícito da noite. Era a única ajuda que admitia, levava muito a sério o seu projecto soberano de família, sem interferências, nem sequer das benignas, que eram as únicas que a prestável porteira tinha para lhe oferecer. Não me venham com piedosas intenções. Quanto às crianças, nenhum mistério, para ela era demasiado incerto ficar à espera do homem certo, muitos falhanços e vários empréstimos bancários depois, os três embriões implantados vingavam, disse-lhe com júbilo o médico. Uma gravidez de risco, um parto de risco, uma maternidade de exaustão, e ainda a tal cadela asmática que uma noite se lhe ensarilhou nas pernas grossas de retenção de líquidos, num regresso das camionetas para casa. Quando ela tão pesada de útero sobrelotado, avançado estado de gravidez, custosas as passadas, cada metro cem, cada quilómetro vinte. E a cadela muito enfarruscada, pequenota e desgraciosa, fruto de improváveis cruzamentos, não a seguia, pelo contrário, andava à sua frente, desbravando aquele labirinto de pernas aceleradas de retorno, como se adivinhasse o caminho, e entrou antes dela no prédio e no elevador, a arfar como um saxofone afogado. Na verdade, não foi Verónica quem encontrou uma cadela velha, asmática e desamparada na rua, mas a cadela que a encontrou a ela. Uma semana não mais, a porteira e a cadela sem nome, ambas olhavam da entrada do prédio Verónica a afastar-se com a mala da maternidade, com o mesmo semblante, misto de orgulho e apreensão, com que os biólogos entregam os seus espécimes à liberdade depois de terem cuidado deles, e abrem a porta da jaula devagarinho, aguardando sempre um último olhar. E as hormonas da cadela aos saltos quando a mulher que ela escolheu voltou a casa com três crias. E as da porteira também que, invocando uma experiência que não tinha, queria acudir ao choro alternados dos pequeninos, assistir aos banhos, mas Verónica barrava-lhe a entrada e a prestança. Prefiro escorregar nos becos lamacentos, redemoinhar aos ventos. Confiava mais na cadela asmática, que se guiava pelas vibrações e dava sinal, mal um deles se agitava e passava do sono à vigília, e só o largava, quando o desassossego abandonava aquele pequenino ser. Pior foi quando os três se começaram a arrastar pela casa, em direcções diferentes, e a cadela, com o seu instinto de rebanho, numa roda-viva a reuni-los, com os seus mansos caninos de pastoreio. E a porteira a bater com os nós dos dedos, a cadela arquejava de resignação, consentia num passeio apressado à rua e regressava em ânsias, a cheirar um de cada vez, a garantir que estavam os três ilesos. À noite, Verónica sempre em estado de alerta, mas antes dela a cadela, reagia no segundo prévio ao menor estremecimento dos gémeos e arrastava a sua trepidante respiração entre os berços. No escuro, nos raros momentos de sossego, Verónica sentia-se tomar por um sentimento que não conhecia, talvez fosse ternura por aquela inverosímil existência entre as suas, um ser de outra espécie que zelava por si e pelos pequenos. Ela que tantas vezes se esquecia de comprar ração, de lhe renovar a água e sempre adiava uma ida ao veterinário que lhe aliviasse os brônquios. No dia seguinte, sim. Havia de lhe fazer um afago, de lhe acomodar uma mantinha num canto para as suas patas esfalfadas, de reagir com alguma entoação amável aos seus alvoroços de cauda, de não repelir o seu focinho seco quando tocava nas suas mãos. Mas mal amanhecia, logo biberões e fraldas se interpunham nos seus planos de véspera, e qualquer vestígio de benevolência esboroava-se no chão como migalhas que Verónica se apressava a varrer. Na verdade, ela não era vocacionada para a gratidão, nunca havia sido prioridade de ninguém, não sabia como retribuir, não lhe haviam jamais ensinado. Por isso, os dias iam apressados, uma dupla incansável em torno de três bebés, e ainda à distância a porteira zelosa. Mas tudo isto era dantes. Quando ainda não havia este cheiro a lixívia entranhado nos cabelos. Quando as unhas de Verónica não se haviam dissolvido de tanto esfregar com detergentes corrosivos. Quando os ruídos lá de fora não chegavam remotos como num aquário, porque havia o cerco, e Verónica havia entaipado as portas e janelas com as tábuas das camas. Quando havia tempo dentro do tempo. Agora, os acontecimentos deixavam de se suceder uns aos outros, tudo era acumulação, e as horas elásticas, tanto podia ser manhã como de noite, as coisas podiam ter ocorrido ontem ou amanhã ou ter entre elas um mês de distância, tanto fazia, perdia-se a escala de sequências, e acordava-se sempre de véspera. E hoje acordei ontem. Também foi antes de Verónica ter erguido os colchões contra a porta, e os nós do dedos da vizinha se tornarem antigos. Antes de toda a casa se ter tornado num paiol de mantimentos, com túneis escavados entres colunas de fraldas e latas de leite em pó. E de Verónica ter mandado vir um carregamento de sacas de argamassa e tijolo, através da catapulta da janela. Previa qualquer brecha, antecipava qualquer emboscada, obstruía qualquer aragem vinda de fora, devia precaver o assalto, defender as crianças a todo o custo, mantê-las em segurança, por isso recuaram, trincheira após trincheira, para dentro do móvel de família. Ali ficavam a maior parte dos dias fechados, os meninos, atordoadas pelas eferverescências dos químicos, pela ausência de luz. Já haviam partilhado berços, as incubadoras, até o mesmo útero, haveriam de se adaptar ao fundo do armário, tranquilizava-se a mãe. E a cadela esquálida, depois de escalar com esforço todo o arsenal de víveres deitava-se exausta junto ao enorme gavetão, e a mãe a escutar a sua respiração ronceira. Isto também foi antes de a cadela sentir aquela picada nos ossos salientes, tão intensa que soltou um latido mudo, não era nenhuma farpa mas os olhos de Verónica sobre o seu dorso. A cadela hesitou quando a mulher lhe abriu a porta da varanda, esperando que ela atravessasse. Estacou por uns momentos, mas logo o cabo de uma vassoura a ajudou com o impulso que faltava. Ficou-se a ver Verónica, com os seus olhos lassos, de ironias e cansaços, a tapar, tijolo após tijolo, a entrada na varanda, até ambas estarem emparedadas. Verónica aliviada, tinha a certeza de que nas suas idas e vindas, a cadela exposta ao ar lá de fora transportava no pelo os germes que contaminavam as ruas, os sopros do mundo. Ao longo de muito tempo, a respiração soluçante da cadela e depois dois uivares como um silvo muito fino. Nada mais. Mas Verónica não sabe dizer se foi ontem, ou há um mês, ou ainda estaria por acontecer amanhã. Acordou de véspera e palpou as pernas dos seus meninos muito frias. A acrescentar à lixívia no chão, ao cloro nas paredes e às fumigações de ozono, Verónica ganhara o hábito de ferver repetidas vezes o leite das crianças, tinha de ter cuidado para não ser enrodilhada nas horas, e evitar que as natas transbordassem e apagassem a chama, deixando largar livremente o gás, dormir era-lhe uma doce urgência que não admitia opção, e acordar depois, talvez ontem ou anteontem, já não sentia frios os braços e pernas dos filhos, se também tão frias as suas mãos, agora que tudo sob um controlo intacto, havia que não deixar extravasar o leite, apenas dormir naquela paz desinfectada, dentro do armário cidadela, tudo devidamente higienizado, rodeada de caixotes de amoníaco, pacotes de fraldas e latas de leite até ao tecto, enquanto o cerco lá fora, talvez já tivesse enchido os biberons, talvez já tivesse fechado o bico do gás, provavelmente nem o tinha feito, haveria de ferver o leite dos três amanhã, agora deixava-se deslizar como um gota pegajosa e branda, moldar todos os contornos do seu corpo às arestas rígidas do armário, Acordar de estar acordada, nesta alternância entre o sono e a não existência. FIM Lisboa, 25 de Setembro, 2020